quinta-feira, 9 de junho de 2016

Set Pieces e grandes cenas

(Capítulo 14 do livro Idealismo: Os Princípios Esquecidos do Cinema Americano)

Uma grande cena pode ser um dos elementos mais importantes de um filme. Os melhores filmes são frequentemente os que têm os momentos mais memoráveis, as melhores cenas, e não necessariamente aqueles que são bons o tempo inteiro ou os que têm menos falhas (traçando um paralelo com a vida real, as viagens das quais mais nos lembramos são geralmente aquelas que tiveram os momentos mais inesquecíveis e prazerosos, que atingiram os picos mais altos, e não as que foram uniformemente agradáveis do começo ao fim ou que tiveram menos problemas).

Definição de Set Piece da Wikipédia:

Um Set Piece é uma cena ou sequência de cenas cuja execução requer um sério planejamento logístico e um considerável gasto de dinheiro. O termo “set piece” é frequentemente usado de maneira mais abrangente para descrever qualquer clímax dramático ou cômico numa história, particularmente aqueles que oferecem alguma resolução, transição, ou conclusão dramática — qualquer cena que seja tão essencial para um filme que ela não pode ser deletada ou pulada no cronograma de filmagem sem que a integridade do produto final seja seriamente danificada. Muitas vezes, roteiros são escritos em torno de “set pieces”, particularmente em filmes-evento de grande orçamento.

Set Pieces normalmente são planejados meticulosamente através de storyboards, testes de imagem, ensaios, em contraste com cenas menores onde o diretor e os atores podem fazer de maneira mais improvisada. Alfred Hitchcock se referia a “set pieces” como “crescendos”, e costumava colocar pelo menos três deles em todos os seus filmes.

Set pieces (ou grandes cenas, em geral) são apropriados para todos os gêneros, não apenas para superproduções, e não necessariamente precisam ter efeitos visuais complexos, grandes gastos de dinheiro. Uma sequência de diálogo também pode ser feita como um set piece. Eles são como pequenos curtas dentro de um filme, com começo, meio, clímax e fim, que podem durar um minuto, cinco ou até mais, e se destacam do resto da narrativa por terem mais ideias, planejamento, conteúdo, intensidade, importância e valor de entretenimento — como diamantes lapidados no meio de pedras menos brilhantes e definidas.

Esses momentos são para a narrativa como os mastros que sustentam a lona de um circo, e os melhores filmes são aqueles que nos presenteiam com as melhores dessas cenas. Qualquer pessoa que já tenha visto filmes o suficiente sabe que suas melhores memórias cinematográficas vêm de momentos e acontecimentos específicos num filme, trechos de alguns segundos ou minutos, imagens ou diálogos específicos, e não de uma vaga lembrança envolvendo a história como um todo, sem nenhum instante que tenha sido particularmente empolgante. Sabendo disso, o diretor que deseja proporcionar uma experiência memorável para o espectador, naturalmente, constrói o filme ao redor dessas cenas-chave, e tenta fazê-las da melhor maneira possível, em vez de simplesmente tentar prender a atenção momento a momento, distraindo a plateia até o final da história. Frequentemente, é o desejo de realizar um desses grandes momentos que motiva o artista a fazer o filme em primeiro lugar.

Essa necessidade de viver momentos parece ser intrínseca ao ser humano, e é algo que influencia diversas atividades — pode explicar, por exemplo, por que canções (mesmo sendo curtas em comparação a um filme) ainda precisam de refrãos e ganchos, ou por que aniversários precisam de bolos e do momento do parabéns, e por que o sexo precisa do orgasmo.

Exemplos de cenas memoráveis do cinema (alguns desses filmes não são exatamente Idealistas, mas os incluí para mostrar como uma grande cena pode elevar o nível de qualquer tipo de filme):

— A perseguição de moto no canal em O Exterminador do Futuro 2: O Julgamento Final (1991)
— O ataque de helicópteros ao som de “Cavalgada das Valquírias” em Apocalypse Now (1978).
— A sequência de abertura de Pânico (1996).
— A cena no Club Silencio em Cidade dos Sonhos (2001).
— Woody Allen na fila do cinema em Noivo Neurótico, Noiva Nervosa (1977).
— O ataque do monomotor em Intriga Internacional (1959).
— A sequência “America” de Amor, Sublime Amor (1961).
— A chuva de sapos em Magnólia (1999).
— A corrida de bigas em Ben-Hur (1959).
— A escalada do Burj Khalifa em Missão Impossível: Protocolo Fantasma (2011).
— O primeiro voo de bicicleta de E.T.: O Extraterrestre (1982).
— A cena do chuveiro de Psicose (1960).
— Gene Kelly cantando a música tema de Cantando na Chuva (1952).
— O beijo na proa do navio em Titanic (1997).
— A sequência “Do-Re-Mi” de A Noviça Rebelde (1965).
— O primeiro encontro com o brontossauro em Jurassic Park – Parque dos Dinossauros (1993).

Repare que o valor dessas cenas não é apenas o fato delas serem bem-feitas e complexas (isso seria apenas exibicionismo técnico), mas o fato delas realizarem algum dos quatro pilares e provocarem alguma emoção positiva no espectador de maneira concentrada, plena: seja espanto, otimismo, surpresa, riso, admiração, tensão, ou magia etc.

Uma das vantagens de certos gêneros, como o musical ou o terror, é que eles já têm uma tendência natural de serem construídos ao redor de set pieces, de momentos (cada sequência musical costuma exigir uma sequência bem elaborada, assim como cada morte ou ataque do “monstro” em um filme de terror), o que não quer dizer que isso seja menos importante em outros gêneros, como no drama e no romance, onde isso não é uma convenção natural.

A força e o sucesso de cineastas como Steven Spielberg, James Cameron e Alfred Hitchcock se deve, em partes, ao fato deles serem mestres dos set pieces, capazes de criarem várias cenas icônicas para cada um de seus filmes — sequências visualmente memoráveis, bem dirigidas, emocionantes, cheias de ideias originais, de inovações técnicas e com temas musicais poderosos; tudo muito bem integrado à narrativa.

O OLHO DO PATO

Até um cineasta como David Lynch, que alguns podem não gostar por suas tramas misteriosas, às vezes incompreensíveis, consegue frequentemente criar entretenimentos excelentes por saber que filmes são sobre momentos. Mesmo quando estamos totalmente confusos em um filme como Cidade dos Sonhos (2001), ou em uma série como Twin Peaks (1990), a história não perde seu magnetismo, pois Lynch consegue criar um senso de que a qualquer instante uma cena inesquecível e intensa poderá acontecer — e geralmente acontece.

Eu meio que sigo um pato quando eu trabalho em um filme, porque se você estudar um pato, você vai ver certas coisas. Você verá um bico, e o bico tem certa textura e certo comprimento. E você verá uma cabeça, e os elementos na cabeça têm certa textura e certo formato, e eles levam ao pescoço. A textura do bico, por exemplo, é bem lisa e com detalhes bem precisos e te remete um pouco às pernas. As pernas são um pouco maiores e mais borrachentas, mas é o bastante para que seu olho vá e volte. Agora, o corpo sendo tão grande, ele pode ser mais suave e a textura não é tão detalhada, mais ou menos como uma nuvem. E a chave de todo o pato é o olho, e onde o olho é situado. Ele precisa estar situado na cabeça, e é a coisa mais detalhada, como uma joia. Se ele estivesse em cima do bico, seriam duas coisas conflitantes, competindo, não ficariam tão bem. E se estivesse no meio do corpo, ele se perderia. Mas é tão perfeito exibir uma joia bem no meio da cabeça daquele jeito, ao lado dessa curva em “S” e com o bico logo em frente, mas com distância o suficiente para que o olho fique muito, muito, muito bem isolado e destacado. Então quando você está trabalhando em um filme, muitas vezes você consegue o bico, e as pernas, e o corpo e tudo mais, mas o olho do pato é uma determinada cena, essa joia, que quando está lá, é absolutamente lindo. É apenas fantástico. — David Lynch

4 comentários:

Anônimo disse...

A cena de "Apocalypse Now" não terá sido feita com alguma intenção de comparar as ações do exército americano no Vietnã com as atrocidades dos nazistas, que tanto culltuavam Richard Wagner?

Caio Amaral disse...

Nunca li isso em nenhum lugar mas acho possível.. é que o filme tem uma atitude meio em cima do muro pelo que lembro.. ao mesmo tempo em que expõe os horrores da guerra, ele torna a guerra um espetáculo, mostra a potência americana.. Não sei se ele é explicitamente anti-EUA.. não vejo o filme há uns 10 anos então não saberia julgar direito, mas é uma associação interessante.

Anônimo disse...

Em Frozen faltou uma história que se encaixasse com Let It Go, apesar do filme ter sido feito em função da música e da cena. Confesso que gosto mais de From The First In Forever. Mas de fato foi a cena de Let It Go que fez o sucesso do filme. Uma amostra disso é esse vídeo que mostra um grupo de marines assistindo Frozen. Gostaram principalmente da parte em que Elsa assanha o cabelo e transforma o vestido:
https://www.youtube.com/watch?v=ER4srD951bw

Caio Amaral disse...

Haha, não tinha visto esse vídeo ainda..! Acho "Let It Go" um set piece brilhante se visto isoladamente.. mas no contexto da história me irritou mais do que divertiu. As outras cenas musicais também são set pieces né.. aliás, um dos motivos de eu ser fã de musicais, é que a natureza do gênero praticamente força os filmes a serem planejados ao redor de set pieces. Terror e ação têm essa inclinação também. Abs!